O SEXO E A ESPIRITUALIDADE SÃO COMPATÍVEIS DENTRO DO CRISTIANISMO?

Esta publicação é fruto de pesquisa e uma coletânea de citações de vários escritores, estudiosos, teólogos e clérigos contemporâneos sobre o cristianismo e sexo. Embora o autor seja integrante de um movimento missionário, este artigo não reflete suas normas ou doutrinas.
"Acredito que o sexo, quando praticado conforme Deus determinou, segundo Seus desígnios e intenções, é uma maravilha pura, necessária e bela da criação de Deus". Paul Williams

PREFÁCIO

   "Eles se reconhecem entre si por sinais e marcas secretas; eles se apaixonam quase que antes de se conhecerem; em todo lugar introduzem um tipo de lascívia religiosa, uma `irmandade' promíscua." Esta não é uma descrição de uma seita moderna feita por alguma publicação sensacionalista dos nossos dias, mas sim uma descrição - feita no segundo século - dos primeiros cristãos que o sistema romano considerava uma seita de sexo promíscua entregue a orgias em reuniões secretas.

   Os seguidores do "preceito áureo", talvez numa tentativa por parte de alguns justiceiros da fé e reagindo à decadente sociedade romana, adotaram cada vez mais uma postura "moral". No segundo século, doutrinas gnósticas e estranhos livros e histórias apócrifos começaram a circular entre os cristãos.

Estas ficções e imitações das Sagradas Escrituras muitas vezes enfatizavam a "pureza" sexual e a virgindade. Uma dessas histórias fantasiosas foi Os Atos de Paulo e Thecla, que se nada mais, revela que a propaganda anti-seita, fantasias sobre controle mental e tentativas violentas de desprogramação existem já pelo menos desde o segundo século. Thecla, a virtuosa heroína da história, era uma jovem noiva em Icônio, que ao ouvir São Paulo pregar ficou cativada pelos seus ensinamentos sobre a virgindade. Os seus pais, enfurecidos, "sexualizaram" seu comportamento. Paulo é acusado de lançar um feitiço de amor sobre ela e Thecla é acusada de estar controlada por ele, isso pelo fato dela estar "atribulada de um modo tão estranho... como uma aranha na janela presa pelas palavras dele, [ela] está dominada por um novo desejo e uma paixão amedontrante..." Quanto a São Paulo, eles concluem: "Fora com o feiticeiro, porque corrompeu todas as nossas mulheres."
  
Alguns zelosos jovens cristãos estavam tão ansiosos em provar a "pureza" da sua convicção religiosa, que pelo menos um jovem de Alexandria na época de Justino Mártir (100-165 d.C.) pediu ao venerando prefeito que lhe permitisse ser castrado a fim de provar aos pagãos que o sexo indiscriminado com suas "irmãs" não tinha relação nenhuma com o cristianismo. - Contudo deve ter sido difícil erradicar a impressão de seita de sexo, porque em 320 D.C o imperador Licínio promulgou leis que proibiam homens e mulheres cristãos (no império do oriente) de estarem em companhia do sexo oposto nas suas casas de oração.

   No século IV, este perseguido movimento de amor, denominado cristianismo, transformava-se drasticamente. No império de Constantino, o cristianismo foi pela primeira vez tolerado e mais tarde estabelecido como a religião do império romano (Édito de Milão, 313 D.C.). Grandemente influenciados por ensinamentos gnósticos negativos, fracionados em grupos cristãos rivais que se acusavam mutuamente de práticas sexuais esquisitas[7], e cada vez mais desejosos de se distanciarem de qualquer indício de indecência sexual, iniciava-se seriamente no cristianismo o grande cisma da sexualidade e da espiritualidade humana.


   A 1ª Parte de Cristianismo e Sexo explora parte do desenvolvimento histórico - todavia nem sempre com base nas Sagradas Escrituras - dos pontos de vista do cristianismo ortodoxo sobre o sexo. A 2ª Parte mostra as mudanças radicais da atualidade no modo de encarar o sexo, que estão sacudindo o cristianismo.

DEUS E O SEXO

E Deus criou... toda criatura vivente que se move... e viu Deus que era bom. E Deus os abençoou, dizendo: Frutificai e multiplicai-vos... E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme à Nossa semelhança... E disse o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma adjutora... À imagem de Deus o criou: macho e fêmea os criou. E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a Terra, e sujeitai-a... E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom (Gênesis 1:21-26; 2:18; 1:27-31).

   "Frutificai e multiplicai-vos!" "Reproduzam-se!", foi uma das primeiras coisas que Deus ordenou às criaturas da Sua gloriosa criação. E novamente, depois do grande dilúvio, Deus lembrou Noé e todos os que sobreviveram com ele que tinham um trabalho importante a fazer: reproduzirem-se!

   Todo o animal que está contigo, de toda a carne, de ave, e de gado, e de todo o réptil que se roja sobre a terra traze fora contigo; e povoem abundantemente a terra, e frutifiquem, e se multipliquem sobre a terra. E abençoou Deus a Noé e a seus filhos, e disse-lhes: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra (Gênesis 8:17; 9:1).

   Ao longo da História, Deus aprova a sexualidade e a reprodução humana. Para Abraão e mais tarde Jacó (Israel), Ele praticamente disse: "Eu sou Deus e quero que vocês reproduzam!"

   Eu sou o Deus Todo-poderoso; frutifica e multiplica-te; uma nação e multidão de nações sairão de ti, e reis procederão dos teus lombos (Gênesis 35:11; cf. também Gênesis 12:1,2,7).
  
Deus quer dizer alguma coisa, Ele está acima do que atualmente é considerado politicamente correto em muitas questões, usando inclusive o ato sexual humano para ilustrar o que Ele tem a dizer, caso seja necessário. Deus mandou que o profeta Oséias, por exemplo, se casasse com uma prostituta e tivesse filhos com ela. Deus certamente sabia que isso suscitaria a desaprovação de alguns dos líderes religiosos e legalistas de Israel que se consideravam melhores do que os outros, mas mandar o Seu profeta casar com uma prostituta deu a Deus uma excelente oportunidade de usar a reação previsível da comunidade para ilustrar o Seu próprio descontentamento com os atos muito piores do povo, os de fornicação espiritual e infidelidade a Ele.


   Disse pois o Senhor a Oséias [o profeta de Deus]: Vai, casa com uma mulher de prostituições, e filhos de prostituições... Ele [Oséias] casou-se com Gomer, filha de Diblaim; e ela concebeu e lhe deu um filho (Oséias 1:2,3).

A BÍBLIA NÃO É ACANHADA

   Muitas passagens da Bíblia são eróticas sem qualquer acanhamento, inclusive os Cantares de Salomão, e várias descrições do relacionamento entre Deus e Sua igreja "infiel". Mesmo o mundo de gozo espiritual prometido aos Seus filhos salvos começa com êxtases arrebatadores quando nossos atuais corpos são transformados por Deus em corpos espirituais. Logo começa a ceia das bodas do Cordeiro (Jesus) para todos os que acreditam nEle, a Sua "Noiva", que então desfrutam de prazeres ardentes perpetuamente à mão direita de Deus. (Cf. Apocalipse 19; Salmos 16:11.)

   As Escrituras têm uma abundância de histórias e alusões a sexo, bem como termos sexuais, demonstrando que Deus está longe de ser "pudico" em relação ao sexo, e que não tem papas na língua. Como resultado, algumas partes da Bíblia, como os Cantares de Salomão, foram praticamente banidas por celibatários do século IV que temiam porque as consideravam picantes demais.

A BÍBLIA OBSCENA

   Algumas pessoas estão esforçando-se para que a Bíblia seja banida por ser muito sensual e discriminatória demais em relação ao sexo para os nossos tempos. A verdade é que, embora a Bíblia seja um livro sensual, ela também contém muitos comentários espinhosos sobre a hipocrisia da humanidade, que pode ser a verdadeira razão de sua impopularidade em certos círculos. Por exemplo, que escritor moderno ousaria descrever a cidade de Jerusalém em 600 A.C. da maneira que Deus inspirou seu grande profeta Ezequiel a descrevê-la no capítulo 16 do Livro de Ezequiel?

   O capítulo começa com uma clara descrição do envolvimento de Deus com Jerusalém, como um homem envolvido com uma mulher, usando termos sexuais explicítos. No princípio ela é só um bebê imundo e abandonado, de quem Ele tem pena, o lava e embeleza. Depois, quando ela já tem idade suficiente e "chega o tempo de amores" (versículo 8), Deus faz amor com ela e a cobre de presentes. Esta mulher ingrata, no entanto, foge de Deus para se tornar prostituta, e uma prostituta tola, a qual Deus diz nem tem suficiente bom senso para cobrar pelos seus favores sexuais, pelo contrário, ela paga aos seus amantes. Para discipliná-la, Deus permite que seus inimigos a dispam e abusem dela. No final, Deus a toma de volta, uma mulher mais humilde e submissa. Isto não é uma história bizarra escrita por uma seita de sexo, mas sim uma alegoria que se encontra nas Sagradas Escrituras reverenciadas por milhões, tanto judeus como cristãos, como a Palavra do próprio Deus.

O SEXO É DE DEUS OU DO DIABO?

   Como já foi mencionado, o próprio Deus criou a sexualidade humana e disse que ela era "muito boa", e o primeiro mandamento que deu ao homem e à mulher foi para "frutificarem e multiplicarem-se". No entanto, só foi preciso uma serpente astuta no Paraíso para ludibriar a humanidade com uma das mentiras mais cruéis que se pode imaginar, a de que, contrariamente às Sagradas Escrituras, que cita Deus dizendo que "Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma adjutora", e "Frutificai e multiplicai-vos e enchei a Terra" (Gênesis 2:18; 1:28). Deus mentira a respeito do sexo, que o sexo era "muito ruim" e que não era "muito bom", que a criação física de Deus, o corpo humano, era mau e motivo de vergonha, e que não era bom para o homem e a mulher viverem juntos, "darem fruto e multiplicarem-se".
   Os prazeres sexuais, continua a mentira, brotaram como um fruto ruim e proibido, colocado pelo próprio Diabo no jardim da bondade humana, e tinha que ser esmagado, desarraigado e lançado fora, se a alma humana esperava escapar das chamas do Inferno. Uma vez que o Diabo, o "mentiroso e pai de todas as mentiras" (João 8:44) conseguiu plantar suas malignas sementes de dúvida sobre Deus sobre a Criação e a sexualidade humana nos corações e mentes do povo, houve a trágica divisão entre espiritualidade e sexualidade.

   Aqueles que acreditaram na mentira e escolheram o caminho contra a sexualidade, negando o corpo para chegar à perfeição, logo viram na descrição bíblica de Adão e Eva no Paraíso, nus e desinibidos, sem qualquer vergonha (Gênesis 2:25), um equívoco um tanto constrangedor nos registros religiosos, e algo que precisava ser explicado. Assim, deu-se à expulsão de Adão do Jardim do Éden a interpretação de que ele foi posto na rua por ter feito sexo com Eva[8], que foi retratada como uma maligna e sensual sedutora que trouxe a maldição sobre um homem que, com exceção disso, era perfeito. Com base nisso, o sexo deveria ser visto como parte da maldição, a má ação que causou os problemas do homem; e a mulher era a responsável.

COMEÇA A GRANDE DISSIMULAÇÃO

   O verdadeiro pecado no Paraíso foi o fato de Adão e Eva sucumbirem à tentação do Diabo, desobedecerem a Deus e comerem o fruto proibido da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal.
   Depois que Adão e Eva pecaram, ficaram conscientes de que estavam nus e se esconderam até mesmo de Deus (cf. Gênesis 3:8). Ao encontrá-los escondendo-se dEle e se cobrindo, Deus lhes perguntou quem tinha-lhes dito que estavam nus e que isso era errado, e perguntou se eles tinham comido o fruto da árvore (cf. Gênesis 3:7,11). Portanto, logicamente, o vestuário e cobrir-se pela primeira vez com folhas de figueira deveria ser considerado pelos cristãos o resultado vergonhoso e repugnante do pecado dos seres humanos e sua rebelião, mentira e desobediência a Deus. Mas em vez disso tal comportamento tem sido adotado por muitos como o distintivo da honra, decência e maravilhoso pudor "natural".
   Denominações cristãs que têm inibições quanto à sexualidade ainda defendem sua obsessão usando de um pudor excessivo e suas atitudes extremamente negativas quanto à sexualidade, afirmando que o próprio Deus defendeu este grande ato do homem esconder o seu corpo quando fez para eles a sua primeira roupa, com pele de animais. Homens como São Gregório de Nissa e São Maximo, o Confessor, defenderam esse ato de esconder o corpo, ensinando que estas "túnicas de peles" (quitões) representavam a natureza animal que a humanidade assumiu como resultado da Queda, que incluía uma sexualidade animalesca adquirida. Que cura eles recomendavam para esta horrível doença que podia ter sido tão facilmente evitada, se somente Deus tivesse criado o ser humano sem sexo? A virgindade, é claro! Eles sustentavam que a virgindade era o estado imortal e incorruptível da humanidade originalmente e que todos nós deveríamos lutar para permanecer virgens (cf.Sherrard, 1976:5-7).
   É sabido que, "fez o Senhor Deus a Adão e a sua mulher túnicas de peles, e os vestiu" (Gênesis 3:21), quando eles estavam para sair do Paraíso. Mas não confundamos o amor, a paciência e a tolerância temporária de Deus para com um certo comportamento, como sinal de que Ele, pessoalmente, aprova ensinamentos negativos quanto à sexualidade.
   Deus com toda certeza não lhes fez "túnicas de peles" por achar que precisavam esconder os seus corpos porque estes eram instrumentos vis, ímpios, sujos, sensuais e pecaminosos. Não era verdade que Ele, Deus, tinha por desventura e falta de sabedoria equipado os seus corpos com aquelas partes sexuais terríveis, secretas, vis, pecaminosas e sensuais, que por coincidência, funcionavam tão bem juntas e causavam uma sensação tão boa, mas eram ímpias demais para até mesmo serem vistas sem que se viesse a sofrer um grande dano espiritual. Mais provavelmente, Deus os envolveu em peles de animais quentinhas para protegê-los, por uma questão de amor e misericórdia, pois dava dó saber que estariam despreparados para as difíceis e novas condições de vida fora do Paraíso.

   Lidar com a dissonância que surge quando a sexualidade e a espiritualidade humanas são postas uma contra a outra, tem atormentado todas as religiões, mas principalmente o cristianismo. A História da Igreja revela que tem se travado uma batalha muito longa e atribulada quanto à questão do corpo e do espírito, da sexualidade e da espiritualidade, do prazer e da piedade. Quando a sexualidade humana se transformou no inimigo da espiritualidade, a humanidade foi pega num dilema dualista. Foram obrigados a escolher entre o prazer agora e dor eterna, entre paixão e paraíso. Onde quer que este dilema dualista tenha assumido o controle da crença religiosa, as pessoas saíram de sincronia com sua própria sexualidade criada por Deus e, como resultado, têm sofrido grande angústia mental, têm sido atormentadas por sentimentos de culpa e começaram a odiar seus próprios corpos e sexualidade.